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Reforma do Ensino Médio, a placa de censura em nossos corpos diz: não recomendado a sociedade (I) - Escola, um espaço de conformação ou emancipação?

Agosto 07, 2018 - 17:53
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"Eu quero fazer jornalismo... Eu quero ser professora, é o que eu amo... E eu, designer de games... Eu quero um curso técnico pra já poder trabalhar... Com o Novo Ensino Médio você tem mais liberdade para escolher o que estudar de acordo com sua vocação. É a liberdade que você queria para decidir o seu futuro. ”[1]

São com essas falas que é feita a propagando da Nova [Contra]Reforma do Ensino Médio. Em um auditório lotado, onde grande parte das pessoas estão imóveis no escuro, alguns jovens estudantes se levantam, são iluminados por uma luz e externam seus desejos profissionais. Uma propagando que traduz bem o que vem a ser essa contrarreforma: Individualizante, pragmática, rendida ao mercado e, como o próprio anúncio deixa claro, relega a maior parte da população a escuridão da incerteza, precarização e desemprego. Esta é a suposta Reforma do Ensino Médio, tocada pelo governo ilegítimo de Temer. Pela ordem e progresso.

Para entendermos do que se trata este ataque a educação pública (e por que se configura como ataque), é importante analisarmos do que se tratam outros projetos visando a Educação, como o Escola Sem Partido[2] e também entendermos quais lógicas, filosofias e pedagogias estão por trás dele, que possui como pedra angular a BNCC (Base Nacional Comum Curricular) e a chamada Teoria das Competências, além de refletirmos sobre os alvos desta ofensiva: as escolas públicas brasileira e seus sujeitos.

 

Escola, um espaço de conformação ou emancipação?

A origem da escola, como entendemos hoje, é antiga e sua história é importante para entendermos a complexidade que é este espaço. Com a formação da sociedade de classes, através do próprio surgimento da propriedade privada (como hoje chamamos), ainda na Antiguidade, emerge uma parcela da sociedade que não mais necessita trabalhar para sobreviver; seu sustento advém da exploração do trabalho de terceiros. Desta forma, a educação, que antes era proveniente do próprio processo laboral, se fragmenta: aqueles que possuíam propriedade passam a receber uma educação formalizada e distinta da dos demais, surgem então as primeiras escolas (SAVIANI, 2011). Na Idade Média as escolas (divididas em catedral[3], paroquial[4] e monacal[5]) adquirem outros significados. Eram espaços destinados as classes dominantes da época, onde se aprendiam sobre as artes da guerra e sobre os aspectos da vida aristocrática. Com a passagem da Idade Média para a Moderna, algumas questões importantes vêm à tona. Os laços deixam de ser naturais (títulos da nobreza passados de pais para filho, por exemplo) e se tornam sociais, este é o ponto de origem da ideia de sociedade, trazido pelo modo capitalista de organização.

“[...] a sociedade deixa de se organizar segundo o direito natural, mas passa a se organizar segundo o direito positivo, um direito estabelecido formalmente por convenção contratual. E por isto que os ideólogos da sociedade moderna vão fazer referência ao chamado contrato social e à sociedade como sendo organizada através de um contrato e não por laços naturais. ”(Ibid., 2011, p. 4)

Desta forma os ideólogos do liberalismo constroem a ideia de liberdade, que é estritamente ligada a propriedade. As pessoas, então, que nas épocas anteriores à Moderna, tinham sua mão de obra explorada através de relações servis e escravas, passam a ter “a liberdade” de vender sua própria mão de obra, ou seja, tornam-se trabalhadoras e, como diz o pedagogo, possuem uma “liberdade posta num sentido contraditório, duplo, aparentemente positivo - livre para dispor de sua força de trabalho - mas também no sentido negativo na medida em que é desvinculada dos seus meios de existência” (Ibid., 2011, p. 6).

Com a própria fundação da chamada Ciência Moderna[6] e o aumento dos processos industriais, uma forte demanda por mão de obra capacitada entra em vigor, surge a necessidade de formação para a vida na cidade, ou seja, a construção e consolidação da convenção contratual descrita anteriormente. Uma das principais funções da educação formal na sociedade moderna, é a construção dessas conformações, deste ideário de liberdade (MÉSZÁROS, 2015). Tal característica pode ser observado ainda nos textos de John Locke[7], por exemplo:

“Os filhos das pessoas trabalhadoras são um corriqueiro fardo para a paróquia, e normalmente são mantidas na ociosidade, de forma que geralmente também se perde o que produziriam para a população até eles completarem doze ou catorze anos de idade [idades a partir das quais era permitido o trabalho]. Para esse problema, a solução mais eficaz que somos capaz de conceber, e que, portanto, humildemente propomos, é a de que, na acima mencionada lei a ser decretada, seja determinado, além disso, que se criem escolas profissionalizantes em todas as paróquias, as quais os filhos de todos, na medida das necessidades da paróquia, entre quatro e treze anos de idade devem ser obrigados a frequentar”.(LOCKE, 1697, p. 383)

Fica evidente então o caráter pragmático e tecnicista da educação destinada a parcela pobre da sociedade. A escola universal e gratuita, que já era pensada desde o século XVII, vem mais para cumprir um papel de formatação e consolidação dos valores dominantes da sociedade, nunca com objetivo de emancipador. Pode-se perceber estas características em outro ideólogo liberal, posterior a Locke, chamado Adam Smith[8]. Em um de seus estudos sobre a relação entre emprego, natalidade, educação e renda, Smith apresenta um parecer bárbaro sobre a importância de ganhos maiores para a classe trabalhadora, que anda de mãos dadas com a desumanização, vejamos:

“O homem sempre precisa viver de seu trabalho, e seu salário deve ser suficiente, no mínimo, para a sua manutenção. Esses salários devem até constituir-se em algo mais, na maioria das vezes; de outra forma seria impossível para ele sustentar uma família e os trabalhadores não poderiam ir além da primeira geração. Baseado nisso, o Sr. Cantillon[9] parece supor que os trabalhadores comuns, da mais baixa qualificação, devem em toda parte ganhar no mínimo o dobro do que é necessário para se manterem, a fim de que possam criar dois filhos, já que o trabalho da esposa, pelo fato de ter ela que cuidar dos filhos, mal é suficiente para ela manter-se a si mesma. Calcula-se que a metade das crianças nascidas morrem antes de chegar à maioridade. De acordo com o que foi dito, os trabalhadores mais pobres devem tentar educar pelo menos quatro filhos, para que dois tenham igual possibilidade de chegar à idade adulta".(SMITH, 1996, p. 120)

Portanto, fica evidente que (para o ideólogo liberal e, consequentemente, seus seguidores atuais) os ganhos de um núcleo familiar visam não seu bem-estar e possibilidade de acesso à cultura e lazer, mas a capacidade de manter vivos alguns de seus filhos até que estes tenham idade necessária para trabalhar, ou seja, a preocupação é com a perpetuação da exploração da mão de obra e, logo, com a perpetuação do capitalismo. Desta forma, para que não haja revoltas e possíveis tentativas de rompimento com esta lógica nefasta, as escolas da sociedade burguesa desempenham um papel central. De acordo com o filósofo húngaro István Mészáros, os séculos XIX e XX foram marcados pela consolidação do utilitarismo no campo da educação. Para ele, quanto mais avançada a sociedade capitalista, mais a acumulação de riqueza se torna um fim em si mesmo e a educação dominante teria como objetivo a internalização “consensual” do ethos burguês, ou seja, desempenharia um papel de naturalizar os valores do capital e seu estabelecimento como “ordem natural” da sociedade (MÉSZÁROS, 2015). Logo, para que a assim denominada racionalidade ideológica burguesa possa de fato penetrar, se fixar e comandar a dinâmica social, ela deve se apresentar como historicamente específica e aprioristicamente perene[10], a fim de erradicar qualquer possibilidade de rompimento e transformação social radical (MÉSZÁROS, 2014). Deste modo, sendo o saber uma força produtiva e meio de produção na sociedade moderna, e os meios produtivos, no capital, propriedade privada da classe dominante, o saber é propriedade privada burguesa. Como a essência sociometabólica do capital impõe que a população pobre só seja dona de sua própria força de trabalho, por conseguinte estes não podem deter o saber, mas sem o saber, não há como produzir na sociedade moderna (SAVIANI, 2011). Temos então o paradigma educacional de nossos tempos. Uma educação voltada para o pragmatismo, tecnicismo, individualidade e alienação (temas que serão abordados posteriormente). Dado o panorama aterrador, alguns questionamentos vêm à mente, como: “Como fica nossa defesa da escola pública? ”, “Que educação queremos para todos e todas nós? ”. Perguntas difíceis de responder, mas, para nutrirmos algumas esperanças e desejo de lutar pela mudança, encerro este tópico alguns apontamentos de Mészáros:

“Assim, nada poderia ser mais justificado do que a instituição da ordem hegemônica alternativa. A estrutura educacional dessa ordem é tanto individual quanto social, e de maneira inseparável. O destinatário da educação socialista não pode ser simplesmente o indivíduo apartado. [...] Ao contrário, a educação socialista se destina a indivíduos sociais, e não os indivíduos isolados. [...] Pois é precisamente a sua situação história e social concreta que os convida a formular os valores pelos quais seu compromisso ativo com determinadas formas de ação pode levar a cabo a realização de sua parte apropriada e adotada de maneira consciente - na grande transformação contínua. Eis como a educação praticamente efetiva dos indivíduos sociais se torna sinônimo do significado mais profundo de educação como autoeducação(MÉSZÁROS, 2015, p. 94)

[1] Propaganda oficial do MEC https://www.youtube.com/watch?v=7_Fdhibi0yQ
[2] Texto que abre a discussão sobre o desmonte da escola pública - O Senhor [Mercado] é meu pastor, nada me faltará https://midiaindependente.org/?q=node/555"
[3] Escolas Catedrais - Se, até ao século XI, a vida intelectual era praticamente monopólio da Igreja, a partir do século XII, inaugura-se uma nova fase. À margem da sociedade feudal, emerge um novo grupo social, a burguesia, urbana, mercantil e manufatureira, dedicada à finança, acumulando riquezas, poder e importância cultural. É com o seu apoio que se vai operar a renovação da ideia de escola, a sua abertura para além das paredes dos mosteiros e abadias rurais. O ensino literalmente deixa o campo e instala-se definitivamente nas cidades. As Escolas Catedrais (escolas urbanas), saídas das antigas escolas episcopais (que alargaram o âmbito dos seus estudos), tomaram a dianteira em relação às escolas dos mosteiros. Instituídas no século XI por determinação do Concílio de Roma (1079), passam, a partir do século XII (Concílio de Latrão, 1179), a ser mantidas através da criação de benefícios para a remuneração dos mestres, prosperando nesse mesmo século. A atividade intelectual abre-se ao exterior, ainda que de forma lenta, absorvendo elementos das culturas judaica, árabe e persa, redescobrindo os autores clássicos, como Aristóteles e, em menor escala, Platão. http://www.educ.fc.ul.pt/docentes/opombo/hfe/momentos/modelos/catedrais....
[4] Escolas Paroquiais - No quadro da cidade romana, cada comunidade cristã organiza-se tendo à sua cabeça um bispo - episcopos - que quer dizer vigilante – eleito pelos fiéis. Com o número crescente de igrejas, os bispos localizam-se apenas nos centros mais importantes, enquanto se desenvolve, nas outras cidades, o papel dos presbíteros – do grego presbyteroi, os anciãos – donde vem a palavra francesa “prêtre”, sacerdote. Foi nestas cidades que surgiram as Escolas Paroquiais (ou Presbitérias). As primeiras remontam ao século II. Limitavam-se à formação de eclesiásticos, sendo o ensino ministrado por qualquer sacerdote encarregado de uma paróquia, que recebia em sua própria casa os jovens rapazes. À medida em que a nova religião se desenvolve, passa-se das casas privadas às primeiras igrejas nas quais o altar substitui a tribuna. O ensino reduz-se aos salmos, às lições das Escrituras, seguindo uma educação estritamente cristã.http://www.educ.fc.ul.pt/docentes/opombo/hfe/momentos/modelos/paroquiais...
[5] Escolas Monásticas - A passagem de uma comunidade cristã minoritária, composta por fiéis prontos a enfrentar o martírio, a uma Igreja vitoriosa, mesmo dominadora, traz consigo um relativo enfraquecimento da fé. É neste clima que nasce, no Egito (o progresso global do cristianismo foi mais precoce no Oriente do que no Ocidente), no fim do século III, o movimento eremita, que traduz a revolta dos seus adeptos contra um tal abrandamento. Retirando-se para o deserto, só – monos, em grego, donde a palavra francesa “moine”, monge - o eremita leva aí uma vida ascética de prece e de meditação, perturbada apenas pela visita daqueles que são atraídos pela sua reputação de sabedoria e santidade. No século VI, S. Bento de Núrcia elabora, no Mosteiro de Monte Cassino, na Campânia (Itália), a regra -regula- que tantos mosteiros viriam a adotar. Esta regra recomenda que os monges permaneçam num mesmo lugar, façam voto de pobreza e de castidade, prestem obediência ao abade – do grego abbas, que significa pai - pratiquem a hospitalidade e a caridade para com os pobres, trabalhem manualmente de forma a garantir a sua subsistência, rezem e, mais importante do que tudo, se dediquem ao estudo e ao ensino. Os mosteiros beneditinos tornam-se assim centros culturais que vão desempenhar um papel decisivo na história da civilização ocidental. Fechados no seu scriptorium (a oficina de escrita e iluminura) e nas suas bibliotecas, os monges copistas, contribuíram de forma decisiva para salvar do esquecimento as obras literárias da Antiguidade. É nos mosteiros espalhados pela Europa, longe do rebuliço das novas cidades emergentes na Europa, que surgem as Escolas Monásticas que visam, inicialmente, apenas a formação de futuros monges. Funcionando de início apenas em regime de internato, estas escolas abrem mais tarde escolas externas com o propósito da formação de leigos cultos (filhos dos Reis e os servidores também). O programa de ensino, de início, muito elementar - aprender a ler, escrever, conhecer a bíblia (se possível de cor), canto e um pouco de aritmética - vai-se enriquecendo de forma a incluir o ensino do latim, gramática, retórica e dialética. http://www.educ.fc.ul.pt/docentes/opombo/hfe/momentos/modelos/episcopais...
[6] "Quando se compara a pesquisa astronômica, de Kepler, com a pesquisa mecânica, de Galileu, pode-se perceber uma profunda semelhança entre elas: ambas revelam um claro direcionamento metódico na procura por regularidades matematicamente formuláveis observadas nos fenômenos naturais. A procura por leis da natureza, por regularidades existentes entre os fenômenos naturais observados é a marca da ciência moderna. A formulação dessas leis, isto é, de enunciados precisos e verificáveis pela experiência, expressos em linguagem matemática, acerca das relações universais que existem entre os fenômenos particulares, passa a ser um dos objetivos centrais da pesquisa científica.[...] Cabe, portanto, a Galileu também o mérito de ter percebido com admirável clareza que a independência dos padrões científicos de julgamento e a conseqüente liberdade de pesquisa científica eram fundamentais para a formação de comunidades científicas e para o processo de institucionalização através dos quais a nova ciência se consolidaria nos Estados Modernos durante os séculos XVII e XVIII. A ciência moderna nasce e prospera sobre as ruínas do autoritarismo e só passará a integrar os currículos universitários no século XVIII, principalmente depois da Revolução Francesa." (MARICONDA, 2006, p. 281/287)
[7] John Lock (1632 - 1704) - Filósofo iluminista inglês conhecido como o "pai do liberalismo". Tem como uma de suas principais elaborações a teoria do contrato social.
[8] Adam Smith (1723 - 1790) - Filósofo iluminista escocês, fortemente influenciado por Locke e tido como o "pai da economia moderna". É considerado o mais importante teórico do liberalismo econômico.
[9] Richard Cantillon (1680 - 1734) - Economista franco-irlandês com grande contribuição para o campo da economia política. É considerado também uma das referências teóricas de Adam Smith.
[10] Para o filósofo, os conceitos "historicamente específico" e "aprioristicamente perene" é uma das bases de racionalização do capital, caracterizados por sua base positivista e neokantiana, atribui a sociedade capitalista o aspecto de atemporal, natural e eterna e, portanto, ahistórica, construindo um ideário de insuperabilidade do capital.

 

Referências

LOCKE, John. Memorandum on the Reform of the poor law. 1697 p. 380.

MARICONDA, P. R. Galileu e a ciência moderna. Cadernos de Ciências Humanas, v. 9, n. 16, p. 267–292, 2006.

MÉSZÁROS, István. A Educação para além do Capital. 2.ed.3.reimp.São Paulo: Boitempo, 2015.

________, István. O Poder da Ideologia. 1.ed., 5. Reimpr. São Paulo: Boitempo, 2014.

SAVIANI, Dermeval. O trabalho como princípio educativo frente às novas tecnologias. In: Novas tecnologias, trabalho e educação. Petrópolis /RJ : Vozes, 1994.

SMITH, Adam. A Riqueza das Nações: Investigação Sobre Sua Natureza e Suas Causas. In: Os Ecnomonistas. São Paulo: Editora Nova Cultura Ltda., 1996, p. 120.

 
Rhavel faz licenciatura em física. É um dos fundadores e editores do Portal Autônomo de Ciências.

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