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Coletes amarelos: guerra civil ou guerra social?

Março 30, 2019 - 14:06
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Desde novembro do ano passado, a França toda está sacudida pelo maior movimento social vivido no país desde 1968. Estamos frente a um movimento heterogêneo e anárquico por essência já que nenhuma representação oficial do movimento é aceita por parte do corpo do movimento. O que está acontecendo na França? Que posição tomam xs anarquistas? Podemos falar de Insurreição? De Revolução Social? Intrigadxs, alguns anarquistas realizaram um par de entrevistas com companheirxs que moram na França e que de alguma ou outra maneira, decidiram se envolver com o movimento. Uma parte dessas entrevistas foi já publicada no número 3 da da revista anarquista “Crônica Subversiva” de Porto Alegre aqui. Entretanto como o debate nos parece urgente enviamos uma parte das entrevistas pela internet.

A nossa intenção ao realizar essas entrevistas é antes de tudo entender quais são as posições dxs anarquistas em relação ao movimento, quais são suas formas de ação e como elas se comunicam com o movimento social. Para isso, buscamos provocar o debate trazendo aqui diferentes posicionamentos em relação à ação anarquista nos movimentos sociais, tudo isso no intuito de nos provocar, desde o lugar onde estamos para (re)pensar nossos meios e métodos de ação.

Das 4 respostas recebidas até agora, encontramos companheiros que se identificam como “Indivíduos Anarquistas que moram em Paris” que chamamos aqui de “IA”, outro companheiro “T” que chamou-se de: “um anarquista de uns 40 anos, desempregado de longa data que mora na periferia de Paris.” Mais um companheiro anarquista da região metropolitana chamado aqui de “A” e por fim, umas/uns companheirxs anarquistas de Toulouse que chamaremos aqui de “AT”.

1) Primeiramente poderiam explicar como nasceu o movimento dos Coletes Amarelos? Qual foi a primeira reação do/dos movimentos anarquistas em relação ao movimento social?

IA: O movimento dos Coletes Amarelos nasce de uma petição cidadã na internet contra um novo imposto sobre o combustível. Lançada em maio de 2018, a petição circula amplamente nas redes sociais, é cada vez mais compartilhada e assinada até que chegara a mais de um milhão de assinaturas. Após, alguém posta um vídeo na web chamando a colocar um colete amarelo no para-brisa do carro como sinal de protesto. No início de outubro, uma nova chamada é lançada, convidando a uma mobilização no dia 17 de novembro de 2018. Nós (quase totalmente alheios às redes sociais), começamos a perceber a existência desse movimento uns dez dias antes dessa data porque as pessoas falavam disso e alguns diziam que ia explodir. A tensão sobe e os jornalistas mediatizam muito o evento. A mobilização é muito forte desde o início, notadamente nas zonas rurais. Essa primeira data consiste sobretudo em uma multiplicação de bloqueios, com a ocupação de trevos e de pedágios de estradas. Contamos já com os primeiros mortos do movimento (agora são 12), manifestantes atropelados pelos automobilistas que forçam os bloqueios. A determinação dos manifestantes é impressionante, temos os primeiros enfrentamentos com a polícia. Muito rapidamente, a questão do preço do combustível é ultrapassada por uma raiva mais geral contra outros impostos e taxas que golpeiam sobretudo as classes mais pobres. Os estudantes secundários (que já estavam mobilizados) entram no baile, bloqueiam os colégios e se revoltam contra a polícia. É a explosão de um “saco cheio” contra a vida cara demais (“não chegamos ao fim do mês” escuta-se nas entrevistas). Pede-se a demissão (impeachment) de Macron, que nos olhos da maioria dos manifestantes representa “a oligarquia no poder”. Não tem que esquecer que o atual presidente e ex-ministro da economia nunca escondeu seu desprezo de classe e sua parceria com os patrões. O imposto no combustível foi sem dúvida a gota que transbordou o copo. Esses momentos felizes de revolta tiveram lugar em Paris, mas também, em muitas cidades do país, inclusive em regiões, supostamente, pacificadas. Isso se propagou também na “França de Além Mar”, notadamente na ilha da Reunião, que, em dezembro de 2018 foi sacudida por uma verdadeira onda insurrecional.  

A partir do 24 de novembro e até hoje, o movimento dos Coletes Amarelos se articulou ao redor de ocupações de trevos e pedágios de estradas assim como jornadas de mobilização semanais nomeados Atos (Atos 1, 2, etc.). Esses Atos, sobretudo durante as primeiras semanas são caraterizados por violentos enfrentamentos com a polícia, a destruição e saques de comércios, ataques a bancos e edifícios públicos. Motins de um jeito raramente visto na história recente do país. Além desses momentos públicos e coletivos, desde o início do movimento, assistimos a um grande onda de ações decentralizadas anônimas que em alguns casos são realizadas por grupos de indivíduos que se identificam como “Coletes Amarelos” e em outros, poderiam igualmente ser contribuições de companheiros anarquistas ou outras minorias revolucionarias: incêndios de pedágios e radares nas autopistas, sabotagens de infraestruturas de transporte (autopistas e trens), energéticas (postos de gasolina, transformadores, centrais eólicas ou postes elétricos), de comunicação (antena de fibra ótica), incêndio a edifícios públicos (principalmente centros de impostos mas também prefeituras e tribunais), ataques à sedes de diferentes partidos políticos, moradias de políticos e as vezes agressões contra prefeitos, deputados, e vice-prefeitos, ataques lugares da mídia (rádio, jornais, televisão), bloqueios e as vezes saques de grandes depósitos como Amazon, Carrefour ou Geodis.  

Todo isso surgiu de uma maneira muito imprevisível e inédita. De um lado, esse movimento de revolta de tal tamanho, que rechaça os partidos e os sindicatos nos entusiasmou, por outro, não somos cegos frente a algumas tendências que emergem massivamente nos discursos dos Coletes Amarelos. Não podemos fechar os olhos frente a uma subida do nacionalismo que agita o fantasma do “povo francês contra a oligarquia” e não nos reconhecemos em um radicalismo cidadão que aspira ao “poder do povo”, quer dizer, à transformação do Estado, por exemplo através da instauração do Referendum de Iniciativa Cidadã [1].

Isso não quer dizer que não achamos que a situação atual não seja interessante, vemos que estamos em um momento em que a revolta se generaliza e isso nos alegra. Na revolta, podemos descobrir o sabor da liberdade e transformar radicalmente nossas relações com outros indivíduos.

T: Inicialmente, o movimento foi lançado em outubro de 2018 na internet, nas « redes sociais » após a uma nova subida do preço do combustível [2]. As pessoas que deram origem ao movimento não se conheciam e não vinham de âmbitos militantes.

O movimento se tornou consistente a partir das primeiras ocupações de rotatórias e do primeiro protesto agitado na avenida dos Champs-Elysés, em Paris, no dia 17 de novembro 2018. Desde então, o movimento tomou uma forma inédita mostrando uma desconfiança, até uma hostilidade em relação aos partidos políticos e os sindicatos. Desde o primeiro dia, o movimento reuniu pessoas muito diferentes politicamente e socialmente. Muito rapidamente a questão dos impostos e da subida do preço do combustível foi ultrapassada: esta reivindicação principal parecia secundaria em relação à raiva generalizada. A raiva do movimento dos Coletes Amarelos é principalmente um “estar de saco cheio” das desigualdades sociais, de não conseguir chegar a fim do mês, e do fato que os ricos (politiqueiros, burgueses de todo o tipo) “se empanturrarem nas nossas costas”, para retomar uma expressão muitas vezes utilizada neste movimento. Por fim, desde o início do movimento, um único slogan faz a unanimidade durante as grandes jornadas de manifestação (os famosos “Atos” semanais que começaram no 17 de novembro): “Macron: demissão”.

Em um primeiro momento, o movimento botou seu foco inicial na questão dos impostos e pelo fato que reunisse pessoas de frentes políticas opostas, o movimento dos Coletes Amarelos gerou nxs anarquistas tanto desconfiança quanto entusiasmo. Alguns participaram ativamente desde o primeiro dia enquanto outros até hoje rechaçam participar. Como é o próprio movimento anarquista, talvez mais do que em tempos “normais”, não existe uma posição comum reunindo todas as tendências anarquistas. E no seio mesmo de cada uma dessas tendências, temos indivíduos, grupos de afinidades, coletivos e organizações tendo posições divergentes em relação ao movimento dos Coletes Amarelos.

A: O movimento dos Coletes Amarelos nasceu após o aumento dos preços do combustível ao qual se adicionava o aumento explosivo dos radares nas estradas e as multas de trânsito cada vez mais numerosas sobretudo quando o governo Macron fez passar o limite de velocidade nas estradas de 90 a 80 km/h em julho de 2018. Nos anos 70, o Estado subvencionou a construção das estradas em uma parceria pública/privada com Vinci [3] e outros. Claramente os impostos dos franceses pagaram uma parte das obras e, uma vez essas obras rentabilizadas para esses gigantes da indústria, os pedágios iam supostamente desaparecer. Mas é tudo o contrário que aconteceu: em 1995, o governo Jospin [4] vendeu definitivamente as estradas a esses grandes grupos, inclusive inscrevendo no contrato que os ligava ao Estado um aumento anual das tarifas ainda mais forte que a inflação. Para dar-lhes uma ideia, hoje um trajeto nas estradas da França custa tão caro em gasolina quanto em pedágios, que antes do último golpe petroleiro, saiam ainda mais caro que a gasolina. Não é casualidade que esse movimento nasceu nas rotatórias: foi primeiramente um movimento de pessoas que moravam fora das cidades e para quem o carro representava uma parte colossal das suas despesas. Porém, seria falso restringir o movimento a essas únicas preocupações, mesmo se claramente a grande maioria das reinvindicações se focavam no poder de consumo. Muito rapidamente, a partir do 1 de dezembro (o movimento começou no dia 17 de novembro), as perspectivas se expandem: reestabelecimento do ISF (Imposto sobre a Fortuna), fazer pagar os ricos, possibilidade para o povo de destituir os dirigentes, vontade de “democracia” direta e real. O que, na minha opinião, temos que perceber é que, muito rapidamente, o movimento desafiou sem concessão, e de forma generalizada todos os intermediários institucionais: políticos, imprensa, sindicatos, polícia, grandes empresas... em suma, quase todos os atores maiores de uma sociedade capitalista.

A visão dxs anarquistas é, ainda hoje, muito heterogênea. Alguns simplesmente esnobam o movimento. Acho que por desprezo às classes médias trabalhadoras, que vivem fazendo crédito para consumir, etc. e que não usam os elementos da linguagem do militante experiente. Outrxs, ficaram afastadxs por medo, sem dúvida, do seu vazio teórico, da sua aparente pobreza política. Outros ainda se jogaram dentro por amor (as vezes) cego, à insurreição, prontos para acolher a Grande Noite. Por fim, uma parte foi para ver, antes de começar a atuar.

AT: O movimento nasceu a partir de um chamado nas redes sociais em relação ao preço do combustível. Na região de Toulouse (sudoeste da França), se materializou com uma presença quotidiana nas rotatórias ao redor da cidade e nos pedágios. Depois de duas semanas, tivemos as primeiras manifestações do sábado. Por nosso lado, foi um pouco complicado em um primeiro tempo para nos posicionarmos e nos apropriarmos do movimento, vendo esse espectro político um pouco vago, abraçando também reivindicações nacionalistas (por exemplo a favor do fechamento de fronteiras ou a denunciação de pessoas migrantes em uma rotatória no norte da França). O que começou a interessar o movimento anarquista é o caráter dos distúrbios das manifestações, o rechaço dos partidos e sindicatos e as reivindicações de classe. Porém foi também a porta aberta para dinâmicas fascistas se desenvolverem e temos a sensação que levamos um tempo para acharmos uma maneira de nos encontrar nesse movimento (e ainda hoje continua.)

2) Aqui, temos os ecos que esse movimento se reivindica de nenhum partido político nem está relacionado com sindicatos, como se pudéssemos sentir um estado de “saco cheio” geral da miséria social e um rechaço à política tradicional. Pensam que isso é um “terreno fértil” para propagar as ideias e práticas anarquistas?  

T: Com certeza. Este rechaço é levado por uma grande maioria do movimento e assumido assim desde o início. De fato, há muito em comum entre o movimento dos Coletes Amarelos e as bases anarquistas: particularmente o rechaço do governo, dos partidos políticos, dos sindicatos e outros “parceiros sociais” (esses “corpos intermediários” encargados de acalmar a revolta e permitir gerar boas relações entre o Estado e os manifestantes), e obviamente a ação direta. O movimento existe principalmente através das ações ilegais, indo desde o bloqueio filtrantes [5] nas rotatórias até o incêndio de prefeituras. As ações realizadas desde novembro de 2018 são inúmeras e muito variadas, os meios típicos de ação de uma insurreição (bloqueios, sabotagens, distúrbios, ...) e os alvos são quase sempre os mesmos que os que os anarquistas costumam atacar (edifícios ou lojas capitalistas e/ou estatais).
Particularmente em novembro-dezembro 2018, vimos os bairros mais ricos de Paris inundados por revoltados que destruíam tudo no seu caminho, inclusive na famosa avenida dos Champs-Elysées, em uma espécie de ódio de classe que mostrava que tudo isso ia além de uma simples questão de imposto sobre o combustível (esse foi cancelado já em 5 de dezembro, o que não impediu que o movimento perdurasse).

Por fim, o funcionamento sem chefes e a multiplicação das assembleias para se organizar de maneira auto-gestionada mostram outro ponto em comum com as práticas anarquistas. Assembleias se formaram durante o movimento e existem ainda, se desfazem e reaparecem sob outras formas. Conversa-se muito também em fóruns, grupos virtuais em Facebook ou chats como Signal, Telegram, Whatsapp...  

Para relativizar um pouco, temos que entender que esse movimento é muito heterogêneo, que reúne pessoas com culturas políticas muito diferentes, e que se o nojo do sistema atual é o ponto comum de todas as pessoas que participam do movimento dos Coletes Amarelos, há também várias pessoas que buscam impulsar sua carreira nas costas do movimento: alguns antigos políticos integraram o movimento para encontrar alguns seguidores para guiar, outros buscam formar partidos políticos ou listas para as próximas eleições europeias. Porém, isso não se faz sem agitação, os que se autoqualificaram de “representantes dos Coletes Amarelos” até o ponto de considerar um encontro com ministros foram confrontados frente a raiva do movimento, recebendo um monte de críticas argumentadas, assim como também mensagens de insultos, ameaças de morte, etc.

IA:  Efetivamente, o movimento expressou inicialmente um rechaço dos partidos, dos sindicatos e da grande mídia, um saco cheio da política tradicional que sempre faz o interesse dos ricos. Hoje, temos a sensação que os sindicatos e alguns partidos (principalmente de esquerda, mas não somente) estão por recuperar e enquadrar a raiva que inicialmente se expressou de maneira espontânea e selvagem. Trata-se de um “terreno fértil” para as ideias anarquistas? Difícil de dizer, e, em todo caso, não nos questionamos nesses termos. Não acreditamos que nosso objetivo seja educar “o povo” ao anarquismo nem que os anarquistas devem guiar a insurreição. Obviamente, tratam-se de momentos onde nossos discursos podem ser parcialmente entendidos e nossas práticas compreendidas, mas, temos a sensação que muita gente está experimentando formas de auto-organização, de autonomia política e de ação direta sem passar pelo anarquismo. E que bom! A difusão de nossas ideias faz parte de nossa atividade cotidiana e não é porque muita gente começa a se revoltar que isso se torna mais importante ou urgente. A questão que nos propusemos mais adiante: como contribuir a aprofundar a desordem? Como complicar a tarefa das tentativas de pacificação lideradas pelos politiqueiros de todas as cores?

AT: Em Toulouse, os vínculos entre o movimento anarquista e os Coletes Amarelos passa essencialmente pelos quadros anti-repressão e pelas modalidades de ação. Porém, vemos que é bastante complicado aportar em relação às questões de “fundo” político. Uma parte das pessoas querem manter um desfoque político para evitar a todo custo uma ruptura. Isso impede posicionamentos claros frente a questões essenciais. Por exemplo, podemos ver pessoas protegendo os gambés cantando “todo mundo odeia a polícia”. É bastante estranho. Apesar de uma relação perturbada com o político, uma grande parte do movimento segue reivindicando o movimento como apolítico. Então, por um lado a propaganda é possível e oferece quadros de discussão bastante interessantes, por outro, nos chocamos com um muro, onde nossos textos e panfletos são considerados como “radicais demais” ou querendo dividir.

 

3) Podemos sentir também uma agradável explosão do movimento que se traduziu por ações diretas contra os símbolos materiais do Estado e do capital nas ruas das grandes cidades como também em regiões remotas. Imaginamos que as mídias e o poder tentaram recuperar essas violências para dividir o movimento entre os “bons manifestantes cidadãos” e os “vândalos”. Como isso se traduziu no seio do movimento e na relação entre anarquistas e Coletes Amarelos?

IA: O Estado tentou desde o início do movimento distinguir « os Coletes Amarelos » das « minorias de vândalos da extrema-esquerda e da ultradireita », assim como os « jovens que vieram para saquear tudo ». Temos a sensação que nas primeiras semanas esse discurso funcionou só parcialmente, nas ruas sentimos uma certa solidariedade nos motins e essas categorias deixavam de existir. Para muitos, a violência não é legitima em si, mas se torna legitima frente à violência do Estado, da polícia. Assim, muitas pessoas ao longo das jornadas de sábado se “radicalizam”, mudam suas formas de “vestimenta” ou de ação, apontando cada vez mais à violência do Estado, à violência da polícia, porque há muitos feridos, inclusive graves mesmo. Porém, uma parte mais cidadã do movimento, que se dissocia da quebradeira nas manifestações sempre existiu. Nas últimas semanas, as “lideranças” dos Coletes Amarelos, indivíduos muito presentes nas redes sociais e muito mediatizados, apelaram a manifestar-se sem violência, reproduzindo nos seus discursos essa distinção entre Coletes Amarelos e vândalos. Isso entra no jogo do Estado que está querendo fazer passar uma nova lei anti-vândalos [lei anti-casseurs]. Os encontros semanais do sábado tornam-se cada vez mais manifestações “tradicionais” (pelo menos em Paris, onde nós moramos), com o roteiro entregado à prefeitura por esses líderes do movimento, com tentativas de impedir que o movimento transborde, instaurando serviços de ordem. Felizmente, a imposição desses serviços de ordem não é consensual no seio do movimento.

T: Neste assunto, como em tudo o resto, não existe consensus no meio dos Coletes Amarelos. Como acontece em cada revolta, o poder grita ao escândalo, critica as violências dos rebeldes sem nunca mencionar a violência social cotidiana que está na origem das revoltas. O presidente, Macron, seu primeiro ministro Edouard Philippe e o ministro do Interior Christophe Castaner não pararam de falar merda dos “maus Coletes Amarelos”. Mesma coisa na imprensa onde todo um saco de jornalistas, politiqueiros e especialistas apelaram a um endurecimento da repressão. Enquanto uma grande maioria da população se rebela, da extrema direita (do Rassemblement National “Junta Nacional” de Marine Le Pen) até a extrema esquerda (da France Insoumise “França Insubmissa” de Jean-Luc Mélenchon) passando obviamente por todos os partidos ditos “moderados”, estigmatizam os “vândalos” (“casseurs”) ao mesmo tempo em que se reconhece, numa linguagem velada, que sem eles Macron não teria retrocedido nada na questão dos impostos.

O que é mais complicado, mas recorrente nas situações de uma revolta, é que encontramos também um grande número de “bombeiros pacificadores” no seio mesmo do movimento. E é obviamente muito mais fácil de dizer abertamente, diante de uma assembleia de 80 pessoas ou frente à uma câmera de televisão que estamos contra as violências dos manifestantes. Não existe nenhum risco para isso. Mas, expor-se a explicar porque achamos justo de arrebentar a porta de um ministério, de apedrejar a polícia, de saquear um supermercado de luxo ou de incendiar uma viatura de polícia, é mais complicado.  
Enquanto anarquistas, é então importante termos um discurso sobre isso, apoiar as ações diretas como estratégia de luta, independentemente do grau suposto de violência. E obviamente, de atuar “como de costume” ao lado dos revoltados, solidários nas ações ofensivas como nos momentos de repressão. Como já dizíamos em 2006 durante o movimento contra o CPE [6] e em 2016 durante o movimento contra a lei Trabalho (loi Travail), “somos todos vândalos”.

AT:  Mesmo que não seja muito claro, podemos ver que uma parte do movimento se reivindicaria mais como “cidadã” e uma outra bastante mais solidaria da pluralidade dos meios de luta do movimento. Por exemplo durante o Ato 12 [2 de fevereiro], alguns Coletes Amarelos contra a quebradeira foram conversar com o prefeito de Toulouse para negociar um trajeto e declarar a manifestação. Felizmente, isso foi muito criticado e somente houve 30 pessoas no seu comício. Essa iniciativa vinha principalmente dos comerciantes. Então, a tentativa de divisão não funcionou para nada. Nos tribunais, vemos que muitas vezes, as pessoas detidas assumem seus atos, tanto criticando a justiça quanto assumindo sua participação no movimento. Da mesma maneira, as pessoas encarceradas são, na grande maioria, solidarias do movimento, mantendo, apesar de penas muitas vezes pesadas, posições de não-dissociação e de manter a sua solidariedade em relação ao movimento, no seu conjunto. Partindo do quadro de organização contra a repressão que recai sobre os Coletes Amarelos, alguns anarquistas tentam fazer o vínculo levando a questão da prisão como um todo, apontando a romper a especificidade da solidariedade, em relação somente aos presos políticos. Em relação à imprensa, observa-se um rechaço da imprensa burguesa no seu conjunto, nos discursos e nas práticas: jornalistas mandados embora dos protestos ou ataques a sedes de imprensa. Essa desconfiança em relação com a mídia vem sobretudo do discurso veiculado por eles em relação aos “vândalos” e mais geralmente sobre o desprezo que estes manifestam em relação ao movimento. Em relação aos ataques em si, observamos que os alvos aceitos por todos e todas são os bancos, as seguradoras e cada vez mais as agencias imobiliárias. Porém, persistem reticências e divisões em relação ao material urbano (estações de ônibus, painéis publicitários, ...) e à prática de “auto-redução” [saque] nos comércios.

 

4) Imaginamos que entre xs anarquistas também existem diferentes maneiras de fazer parte do movimento, poderiam nos explicar qual é a sua e porquê?

IA: O movimento anarquista na França é muito heterogêneo e as posições entre companheiros em relação ao movimento dos Coletes Amarelos são múltiplas. Há alguns que desde o início têm uma postura muito crítica, colocando em evidencia o lado nacionalista, conspirativo e a presença da extrema direita. Para nós, tratam-se de aspectos não negligenciáveis, mas que não caracterizam o movimento inteiro, que expressa sobretudo uma raiva contra o governo e o poder econômico. Outros anarquistas se lançaram com entusiasmo no movimento, alguns inclusive conseguem se identificar como Coletes Amarelos. Nós não. Não nos reconhecemos com a maioria das ideias levadas pelos Coletes Amarelos, não lutamos pelo preço do combustível, não demandamos mais Estado social, nem um aumento do SMIC (salário mínimo), não somos “A França com raiva” porque cuspimos na França como em todas as outras nações. Não nos organizamos nas redes sociais e não gostamos dos líderes inclusive quando se tratam de líderes revolucionários, porém, nos alegramos da revolta, da desordem generalizada e pensamos que podemos contribuir com isso desde ideias que são nossas, quer dizer, sem participar diretamente do movimento dos Coletes Amarelos (ocupações de rotatórias, assembleias). Nos momentos da raiva social, a ação anarquista pode ser mais eficaz e pertinente se os companheiros e companheiras já têm bases sólidas de afinidade, uma experiência prática e um conhecimento do terreno. Algumas contribuições reivindicadas pelos companheiros nos parecem muito importantes, por exemplo, o incêndio de uma igreja, de uma torre hertziana, assim como da sede da rádio informativa France Bleu, tudo isso em Grenoble. Mas, podemos supor que numerosos atentados e sabotagens reivindicados, como já o mencionamos, constituem contribuições vindo de companheiros do movimento em curso.

T: Vou me contentar de responder aqui só por mim, em relação as minhas escolhas de participação e intervenção no seio do movimento dos Coletes Amarelos, porque seria longo e complicado demais de levantar um painel das diferentes abordagens que os anarquistas têm em relação ao movimento. Demorei mais que outros, em aceitar que o movimento levava consigo algo insurrecional, que tudo isso ia além de uma história de imposto e de combustível. Mas, desde o início de dezembro, o integrei profundamente! Participo com minha “bagagem política”, meus conhecimentos e meus saberes-fazeres que são uteis, para mim, mas também para todo o movimento. Me permito dizer isso sem falsa modéstia, vinte anos de manifestações, de motins, de assembleias, de ocupações, de bloqueios, de greves, etc. não é irrelevante quando nos encontramos em meio de pessoas que expressam uma raiva intensa mas participam, às vezes aos 35 anos, de sua primeira manifestação... e se falo isso sem falsa modéstia, o falo também reconhecendo que o frescor rebelde do movimento em novembro-dezembro permitiu a realização de ações diretas de um tamanho relativamente incrível. O conhecimento do “terreno” e os costumes de luta que temos são claramente triunfos para compartilhar, mas, podem também constituir limites. É difícil analisar a ausência aparente de apreensão e medo que podíamos ver nos descontrolados nas ruas de Paris (e sem dúvida também em outros lados), pelo menos no 24 de novembro e no 8 de dezembro, e em mediana medida no 5 de janeiro.  A raiva social transbordava claramente os costumes militantes e ativistas “habituais”. Poderíamos dizer a mesma coisa de levantamentos relativamente recentes como durante a revolta incendiaria de outono 2005, o movimento contra o CPE em 2006 ou mesmo os mais recentes contra a Lei do Trabalho em 2016 e após a agressão de Théo, em fevereiro 2017 [7]. Mas, tenho a sensação que as formas que tomou a explosão de raiva do movimento dos Coletes Amarelos tem que ver com diferentes fatores: por um lado, os adquiridos ofensivos desses movimentos de lutas recentes que marcaram uma parte das pessoas que participam do movimento (pelo menos se não na forma, no conteúdo), aos quais podemos adicionar os tumultos nos Champs-Élysées do último verão após a vitória do time da França na copa do mundo de futebol (essa avenida é um santuário intocável durante os movimentos sociais habituais enquanto constitui obviamente um alvo muito pertinente, economicamente e simbolicamente), os tumultos rurais na ZAD [Zona a Defender] de Notre-Dame-des-Landes em 2012, o movimento dos Bonnets Rouges [8] [Toucas Vermelhas] em 2013-2014, tantos momentos que assentam a ideia de que temos motivos e razão para nos revoltarmos. Tudo isso é para o imaginário “revoltado” que pode ser presente na cabeça de cada um de nós e não somente nos anarquistas! Para o resto, muita gente veio com sua raiva e seu saber-fazer. Por exemplo, no início de dezembro e janeiro, maquinas de construção foram utilizadas durante os tumultos ou manifestações selvagens nas ruas mais ricas da capital para mover veículos em chamas no meio da estrada e reforçar as barricadas, ou para quebrar a porta de um ministério e várias vitrines de bancos... Na verdade, nunca tinha visto isso antes. Até agora, as máquinas de construção eram, no melhor dos casos, incendiadas, agora estão sendo utilizadas com sensatez e logo incendiadas.

Mas, me emociono e me perco!

Nas manifestações selvagens e nos momentos de tumultos, o saber-fazer anarquista é sempre útil. Mas minha participação no seio desse movimento, apesar de tudo o que acabei de contar, é provavelmente menos focada nos tumultos que “de costume”. Primeiro porque pelo menos até a metade de janeiro, se um monte de anarquistas participou nesses momentos de desordem nas ruas, sua/nossa presença não era decisiva, ou em todo caso muito menos que por exemplo em 2016 durante o movimento contra a lei do Trabalho, onde tínhamos às vezes a sensação que sem nós (os anarquistas e outros rebeldes autônomos, antifa, etc.), teria tido somente desfiles bunda-mole entre slogan pesados, cachorros quentes e música ruim. Mas, porque o movimento dos Coletes Amarelos é particularmente confuso ao nível das ideias e das perspectivas que leva, porque é inédito ao nível da sua composição (encontramos principalmente pessoas que têm raiva do sistema e da burguesia no poder, às vezes chamada “oligarquia”, muita gente se dizendo “apolítico” ou “apartidário”, mas também muita gente politizada indo de anarquistas, antifas, etc. até a extrema direita, passando por membros de diversos partidos políticos, soberanistas/nacionalistas e/ou de extrema esquerda), me pareceu importante participar ativamente dos debates internos do movimento, indo nas assembleias de luta, distribuindo panfletos e escrevendo nas paredes... bom, não é como se “de costume”, não fazia isso, mas digamos que aí me pareceu ainda mais importante.

Ah sim, o lance novo para mim, foi de ter feito o “esforço” de me inscrever e participar em grupos de discussão virtuais dos Coletes Amarelos em chats do tipo Signal, Whatsapp, Telegram... São claramente não os meios mais interessantes de intervenção no seio de uma luta, mas é inegável que permitem ao mesmo tempo, ter uma ideia a mais do que se diz entre os participantes do movimento e também de aportar nossas ideias. Foi notadamente útil e ainda o é, sobre temas polêmicos como a presença da extrema direita no movimento, ou ainda a questão da violência (sim, mesmo num movimento selvagem como esse, com cenas de tumultos incríveis, encontram-se pessoas que afirmam que esse movimento é “pacifico” e que “os vândalos desacreditam o movimento”!)

A: Na minha opinião, o que é essencial é entender que a imensa maioria dos Coletes Amarelos são manifestantes primários, para a maioria, era a primeira vez que bloqueavam algo, que se encontravam fora da lei. Isso se vê muito com a ingenuidade com a qual enfrentaram a repressão policial e judicial. Os números são complicados de verificar mas somente no mês de dezembro houve mais de 4000 detenções, e pelo menos 200 penas de prisão, sistematicamente acompanhadas de uma interdição de manifestar durante 3 anos (isso nunca foi visto na França, e ao parecer é só um início). Entre os condenados quase todos tinham uma ficha limpa e foram reconhecidos culpados somente em base as suas próprias confissões, tipo: “sim, lancei uma garrafa na polícia porque bateram em nós sem motivo, somente me defendia.” Etc. Quando conhecemos a reação do poder judiciário frente a processos, na maioria do tempo, esvaziados de prova material, nos damos conta do lado ingênuo de tais confissões. Mas, considero que não devemos olhar para essa ingenuidade com arrogância ou desprezo. Acreditei na justiça até minha primeira detenção... As pessoas necessitam ter essas experiências e enquanto anarquistas “experientes” creio que devemos absolutamente deixar o tempo, tomar o tempo, porque esse movimento somente está começando. Enquanto os dois últimos movimentos da Lei do Trabalho mostraram a incapacidade dos profissionais da luta autônoma para inventar novas formas de luta, de ir além das manifestações sindicais, pessoas que nunca se manifestaram e que alguns olham com desprezo, fizeram isso em menos de dois meses.

AT: Uma presença na rua primeiro, para criar slogans, mexer com os fascistas e participar da ação direta. De maneira mais organizada, nos pareceu mais “simples” tomar parte ao quadro da “anti-repressão” organizando permanências para os familiares, amigos e companheiros dos detidos, a escritura de cartas para pessoas encarceradas e a difusão de conselhos jurídicos sob a forma de panfletos ou oficinas. A aproximação do movimento sob o ângulo da anti-repressão é uma maneira “mais fácil” de ser útil ao mesmo tempo em que pode-se aportar ideias políticas às quais pertencemos.

Após quase 3 meses de movimento social que não parece próximo a acabar, quais são as perspectivas? Será que a esquerda sindicalista está por recuperar o movimento? Como se posicionam os Coletes Amarelos anarquistas diante, por exemplo, da candidatura de uma lista “Coletes Amarelos” nas eleições europeias?

IA: Como previsível, assistimos a uma ritualização dos encontros semanais, à sua normalização e a tentativas de controles e enquadramentos por partidos, sindicatos inclusive pela extrema-esquerda. Como previsível, políticos de todas as cores, desde a extrema esquerda à extrema-direita, mas também, novos políticos cidadãs, tentam liderar o descontentamento em direção às urnas. Não tem surpresa então. Porém, as pessoas continuam se organizando desde baixo, fora essas tentativas de enquadramento e de recuperação. Existe uma raiva difusa, os bloqueios, as sabotagens, os incêndios de edifícios públicos e os ataques contra políticos seguem. Não acreditamos que as tentativas de recuperação dos “partidos dos Coletes Amarelos” poderão apaziguar a raiva difusa e colocar fim à guerra social. Pelo menos, é o que esperamos!

T: No dia 5 de fevereiro, teve um chamado à greve geral, lançada pelos Coletes Amarelos, os principais sindicatos dos movimentos sociais (CGT, Solidaires,...) e dos partidos de extrema esquerda tipo NPA [9], mas, resultou em uma derrota relativamente esperada. Finalmente, a ofensiva voltou no sábado 11 de fevereiro, durante o Ato 13. Em Paris, a manifestação dos Coletes Amarelos se rearticulou com o aspecto selvagem e dos distúrbios, no início de dezembro [10], mas, o aspecto massivo não é mais o mesmo. Se há ainda muitas assembleias e auto-organização, me parece que o movimento está no baixo da onda e parece ainda muito heterogêneo. É então difícil de apresentar as perspectivas globais, mesmo se a raiva contra o poder do dinheiro e das elites políticas segue intacta.

Em relação às questões ligadas à extrema direita, seguem presentes. No último sábado (11 de fevereiro), enfrentamentos entre antifa e fascistas em Lyon tiveram como consequência uma derrota dos fascistas, porém, enraizados em Lyon. Na semana anterior, foi em Paris que os fachos foram retirados da manifestação dos Coletes Amarelos. A mesma coisa aconteceu em Bordeaux nas semanas anteriores, assim como em outras cidades. Ou seja, é cedo demais para concluir que a extrema direita está fora do movimento.

Em relação à esquerda sindical, se começa a encontrar cada vez mais seu lugar nas manifestações, segue atrás, e a desconfiança dos Coletes Amarelos em relação aos sindicatos segue sendo bastante significativa. De maneira geral, independentemente das suas tendências políticas, os Coletes Amarelos são muito críticos em relação a tudo que poderia se assimilar à recuperação política. As listas mais ou menos etiquetadas ou oriundas do movimento dos Coletes Amarelos para as eleições europeias são até agora muito impopulares, talvez até mais impopulares entre os Coletes Amarelos que no meio do resto da população. As e os que se encontram na cabeça dessas listas são vistas como traidores ou como recuperadores. Então, o ponto de vista dos Coletes Amarelos anarquistas em relação a isso é fácil de adivinhar: é o mesmo.
Muitos anarquistas (e aparentados) que se envolveram no movimento dos Coletes Amarelos chamam à auto-organização durante as assembleias, a buscar meios horizontais e decentralizados para ficar conectados e conseguir se organizar a maior escala, sempre partindo das assembleias locais. Contrapondo, a reivindicação do RIC é vista como uma maneira de fazer calar a revolta criando uma ilusão de poder popular mediante possibilidades de votos temáticos...

De um lado, temos perspectivas de auto-organização sem passar pelo Estado nem por outras vias de hierarquia política e do outro, teríamos o retorno a um vínculo social reformista com os mesmos modos de campanhas (com os mesmos problemas habituais de financiamento, midiatização e lavagem cerebral típico da sociedade espetacular-mercantil) para votar “sim” ou “não” a tal proposição, e obviamente o Estado que decide em última instancia. Então, sem querer idealizar as formas que tomam as assembleias de Coletes Amarelos por enquanto (e ainda menos o conteúdo), não há muita dúvida enquanto às opções que se perfilam nas assembleias de luta, o RIC ou as listas eleitorais para as eleições europeias.

Pequena citação para terminar:

“Na França, infelizmente, as pessoas não gostam muito da polícia, as pessoas querem matar policiais. Temos de repetir isso ainda, nas redes sociais se vê muito:  chamados para assassinato, chamados a foder com a polícia, o problema está aqui, existem coquetéis Molotov que são atirados contra a polícia, policiais que são vítimas por ser atingidos por bola de petanca [jogo tradicional e popular francês], por garrafas com ácido, com cabo de picareta, então, entendo efetivamente que, seria muito bom nós termos manifestações pacificas, nós gostaríamos muito.” Axel Ronde, secretário geral do sindicato VIGI-police (uma organização sindical que antigamente pertencia à CGT), 18 de janeiro de 2019, no programa de TV: Arrêts sur Images [11].
Na real, frente aos discursos de auto-vitimização por parte dos representantes dos porcos, contamos em menos de 3 meses de movimento, desde o 17 de novembro, entre as pessoas feridas pelas armas da polícia, pelo menos 20 pessoas com um dos olhos arrancados, 5 pessoas com uma mão arrancadas e uma pessoa falecida [12].

AT: Então, em Toulouse, vemos que a presença da extrema direita « ativa » se manifestou mais essas últimas semanas com o ataque por uns fascistas (fafs) a um grupo maoísta durante uma manifestação, com a presença da rede de televisão Soral [13] e a proliferação de pixações antissemitas nas ruas. De fato, podemos notar que no início, os Coletes Amarelos pareciam bastante incômodos quando os fachos eram expulsos fisicamente das manifestações, sempre com o argumento de que “nada serve sermos radicais” e que isso somente ia dividir o movimento. Em relação a isso, começaram a mover as coisas quando os maoístas foram atacados por fachos que faziam saudações nazistas. É um pouco confortante ver-se materializar limites a um princípio democrático que quer ser mais forte que tudo, mesmo que isso seja insuficiente e que nos gostaria ver aparecer outras linhas ou perspectivas mais claras politicamente. É esse elemento que nos dá um pouco de medo com esse movimento, o pouco de perspectiva política com exceção do: “Macron demissão”. Tudo parece se centrar ao redor de práticas comuns e do medo da divisão. Vemos também que cada vez são menos rotatórias ocupadas e muitos Coletes Amarelos começam a se desencorajar dentro de algumas comissões. Mais geralmente, a esquerda sindicalista parece andar atrás com suas tentativas um pouco falhadas de greves gerais e tentativas de fazer presença durante as assembleias gerais dos Coletes Amarelos.

A: Em relação às diferentes tentativas de recuperação do movimento, até agora, falharam todas e foi uma beleza! A meia-dúzia de Coletes Amarelos autoproclamadas lideranças do movimento e que, para alguns tentam criar uma lista para as eleições europeias, receberam todos ameaças de morte, assim que muitos já renunciaram. Essas ameaças não se resumiram a simples cartas anônimas, e da mesma maneira que as pessoas atacaram regularmente as moradias pessoais dos eleitos (tentativa de incêndio na casa de Richard Ferrand, presidente da assembleia; carro pessoal de Johanna Roland, prefeita de Nantes queimado na frente do seu domicilio; numerosas sedes de partidos políticos atacadas...) a mensagem é clara para qualquer um que tentaria falar no lugar dos outros. A imensa maioria de ataques, de incêndios, de sabotagens que tiveram lugar sem se enfraquecer desde inicios de dezembro são realizados por Coletes Amarelos puros e duros. A exceção do incêndio de France Bleu Isère em Grenoble [sede de uma rádio] em janeiro que foi reivindicado por companheirxs anarquistas, a imensa maioria desses atos foi levada a cabo por senhores e senhoras que podem ser qualquer um/a. O que explica então a facilidade pelos atores da repressão para encontrar os autores quase sistematicamente (pessoas sem luvas, sem toca, que mexem no smartphone ao mesmo tempo em que quebram as coisas, e como já falei, com confissão fácil). Eu consideraria então vãs todas as tentativas de recuperação do movimento, de onde seja que elas vêm. E se é verdade que a extrema direita é cada vez menos presente, graças também à uma presença física de grupos antifascistas que os expulsam e caçam literalmente, na maioria das manifestações, os cortejos parisienses se parecem cada vez mais ao leque social da extrema esquerda tradicional. E falando em recuperação diria que a única vitória da esquerda cidadã-pacifista tem a ver; não no terreno das ideias, porque o movimento dos Coletes Amarelos tem isso de revolucionário: bane a ideia mesma de qualquer cumplicidade com qualquer ator capitalista; mas no fato de ter imposto aos cortejos parisienses dos sábados tradicionais, caminhos novamente declarados e então afastados dos bairros ricos e enquadrados à “alemã” por centenas de policiais em cada vereda.

Desde início de fevereiro as forças contrarrevolucionarias trabalham a toda velocidade. Tendo observado a impossibilidade atual de enquadrar o movimento recuperando-o, o poder escolheu a repressão dura. Nunca vimos isso, nem sequer em 1968 dizem os mais antigos. Os números aumentam cada dia mais, mas em resumo: 300 feridos graves; 22 pessoas com olho arrancado (cuja metade é claramente pacifista!); 5 mãos arrancadas (com essas famosas granadas GLIF4 que contêm TNT; 6000 detenções desde novembro, 5000 custodias, pelo menos 2000 condenações (sabendo que muitos julgamentos ainda não aconteceram), 250 penas de prisão (e muitas vezes somente pelo fato de levar óculos de mergulho). Temos que adicionar a isso a nova lei « anti-vândalos » [anti-casseurs] que estava em trâmite há 10 anos mas que nenhum governo ousava colocar em prática. Isso porque prevê e permite a detenção preventiva de qualquer pessoa suspeita pelo Estado de, talvez algum dia, inch´allah... cometer violências. É realmente Minority Report no país de Voltaire. E com a finalidade de secundar seu braço armado de uma luva de veludo, a última invenção do governo não é menos ousada. Enquanto durante a manifestação do dia 16 de fevereiro Alain Finkelraut (um intelectual muito fascista, e, por outro lado, judeu) foi expulso por apenas 5 pessoas aos gritos de “sionista fedido”, o Estado aproveitou para acusar o movimento de ser antissemita, o que comprova, segundo ele, que o movimento está sendo recuperado por uma extrema esquerda, também supostamente antissemita. Durante o mês de dezembro, os Coletes Amarelos eram todos tolos infiltrados por nazis, hoje são antissemitas convertidos à extrema esquerda, amanhã talvez seremos vilões agentes russos ao serviço dos Smurfs ?! Em fim, e, é menos engraçado, Macron em pessoa se declarou a favor da inscrição da lei do anti-sionismo como parte integrante do antissemitismo, fala por si só...

Notas:

[1] RIC: Referendum de Iniciativa Cidadã foi uma proposta de “radicalização” da democracia lançada pelo partido da França Insubmissa (FI) que propõe que qualquer cidadã possa propor uma lei e que essa lei possa ser aprovada ou não através de um referendum. Mais que revolucionaria, essa proposta segue um caminho reformista e apaziguador, se bem propõe expandir o princípio democrático não questiona a própria estrutura na qual o jogo democrático está inscrito. A finalidade desse tipo de iniciativa é a pacificação da revolta e o seu controle pelos dirigentes sindicais e partidários da esquerda tradicional.
[2] https://www.liberation.fr/france/2018/12/14/qui-est-a-l-origine-du-mouve...
[3] Antigamente Sociedade Geral das Empresas, Vinci é um grupo empresarial presente em 16 países. Foi também o responsável por montar o projeto do aeroporto “Grand- Ouest”, tentativa falhada graças à luta dos Zadistas de Notre Dame des Landes. Entre outros, Vinci encontrou-se também com protestos na Rússia da construção da estrada de Moscou até São Petersburgo que passa pela floresta de Khimki já que mais de 75% da população se opõe ao projeto.
[4] Jospin foi primeiro Ministro do país de 1997 a 2002 durante o governo do presidente de direita J.Chirac. Foi primeiro secretário do Partido Socialista de 1981 a 1988 e de 1995 a 1997.
[5] https://www.latribune.fr/economie/france/gilets-jaunes-macron-annule-la-...
[6] O movimento contra o CPE foi um movimento massivo contra a precarização do trabalho
[7] No dia 2 de fevereiro de 2017, Theodore Luhaka, “Théo”, um jovem de 22 anos sofreu uma abordagem policial nos subúrbios de Paris. O jovem que rechaçou se submeter à polícia foi violentamente golpeado e estuprado por um policial e seu cassetete. Esse “acontecimento” além de gerar revolta na sociedade mostrou a verdadeira cara da polícia.
[8] Esse movimento se desenvolve na Bretanha em reação ao preço elevado dos impostos sobre os veículos de mercadorias em 2013 e 2014.
[9] Nouveau Parti Anticapitaliste (Novo Partido Anticapitalista), partido de extrema esquerda revolucionaria, de tendência trotskista.
[10] https://paris-luttes.info/manifs-sauvages-et-emeute-11644

[11]https://www.arretsurimages.net/emissions/arret-sur-images/gilets-jaunes-...

[12]https://desarmons.net/index.php/2019/01/04/recensement-provisoire-des-bl...

[13] Alain Soral declara-se como “sociólogo popular” e marxista. Porém, ele é conhecido por manifestar ideias antissemitas muito profundas além de apoiar desde 2006 a Frente Nacional de Jean-Marie e Marine Le Pen. Foi expulso da academia de Science Po da qual fazia parte até então. Ultimamente, manifestou-se notadamente desde um canal no YouTube que em várias ocasiões acaba sendo clausurado por difundir “mensagens de ódio.”

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