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Bacurau e a metáfora da resistência popular

Setembro 24, 2019 - 10:22
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Volta e meia ouvimos pelas ruas, esquinas e bares a seguinte frase “o povo brasileiro é muito pacífico”. Ou algo relacionado com reações de apatia quando acontece algum escândalo vinculado à política institucional e seus representantes oficiais e políticos profissionais metidos em maracutaias e crimes de Estado desde sempre. É preciso dizer que não podemos analisar as coisas de forma tão imediata, sem perspectiva minimamente histórica e apenas olhando para a política institucional, ou ainda nosso umbigo e bolha social.

Nesse sentido, o filme Bacurau (direção de Kleber Mendonça Filho e Juliano Dorneles) é fundamental politicamente nesse momento, além de ser uma obra-prima da sétima arte. O filme se constrói justamente na contramão dessa perspectiva imediatista e mostra o quanto a questão do tal “pacifismo político” do povo brasileiro é uma falácia.

Bacurau é um vilarejo fictício numa cidade do interior de Pernambuco e a trama se passa num futuro. Dão o tom do filme questões que misturam tradição e modernidade, o antigo e o novo, mas sem ser piegas e mostrando a simplicidade, pobreza e ao mesmo tempo muita garra de viver do povo nordestino. Fora isso, tem elementos do filme que parecem ser menos explicativos justamente para dar margem a visões diversas da obra.

Também podemos dizer que Bacurau se remete a história de toda a população pobre e excluída ao longo de 500 anos dessa terra que chamamos de Brasil.

Acontece que Bacurau tem um grande acerto de ser uma espetacular metáfora das histórias de resistências que sempre aconteceram, ainda acontecem, busca invisibilizar volta e meia, mas que são protagonizadas pelo povo no sertão, agreste, favelas, periferias, escolas públicas, praças nos subúrbios, interiores e outros tantos locais que nunca se calaram diante de tanta exploração e violência do Estado.

Não é um filme óbvio, nem é um filme fácil. As atuações são simplesmente fantásticas e existem muitas lacunas pra interpretações. Importante mencionar isso.

No mais, é interessante analisar Bacurau como uma recusa de toda política institucional. O tal do prefeito pode ser sim representado por qualquer desses políticos profissionais, seja de direita ou esquerda, do partido X, Y ou Z.

Então, afirmo aqui que Bacurau é Quilombo dos Palmares, Balaiada e Sabinada. Bacurau é Canudos, Revolta da Vacina, Revolução Praieira e Revolta dos Malês. Bacurau é a Greve Geral de 1917, Passeata dos 100 mil em 1968, Pinheirinho e Confederação dos Tamoios. Bacurau significa as diversas Ocupações Sem-Tetos e Sem-Terra em todo país. Bacurau são as revoltas populares de 2013, a juventude de periferia que compõe a linha de frente contra a polícia nas manifestações, são as revoltas com barricadas de moradores nas favelas quando o Estado mata mais um do povo. Bacurau também são as ocupações escolares, sua autogestão e auto-organização composta por estudantes de periferia do país, construindo defender de forma aguerrida um espaço que deve e precisa ser apropriado pelo povo: as escolas públicas.

Bacurau é resistência popular a partir da autodefesa. O povo sempre se organizou e de uma forma ou de outra buscou resistir. O papel das instituições e personalidades ligadas ao Estado em Bacurau cumpre justamente seu papel histórico de explorar, fazer alianças (internas e/ou externas) e tentar reprimir se houver contestação. A alegoria de colocar estrangeiros em acordo com a politicagem local é um sintoma do que sempre aconteceu por aqui, desde a época da colonização. E é daí que reforço que Bacurau significa os quilombos, a resistência indígena e dos povos nas periferias do país.

 

Por fim, me veio a cabeça a fala de um ou outro parlamentar dizendo que temos que “ser todos Bacurau” cada vez mais em tempos como nosso. Eu não discordo da fala, mas é importante que se realmente o povo se tornar Bacurau não vai sobrar pedra sobre pedra, Lunga e seu bando, iriam pra cima inclusive da politicagem profissional de partidos de esquerda.

Encerro relembrando o clássico verso do “Rap da Felicidade” quando diz que “o povo tem a força só precisa descobrir / se eles lá não fazem nada, faremos todos aqui”. Essa é a metáfora e a reflexão que Bacurau nos deixa. E assim como o menino diz no filme “quem nasce em Bacurau é gente”. Portanto, acima de tudo, precisamos resgatar o histórico de luta de nossa gente e organizar a resistência popular que nunca deixou de existir, mesmo em momentos críticos como o que vivemos atualmente em diversos sentidos e aspectos da vida social, política e econômica.

 
Guilherme Santana é professor do Pré Vestibular Machado de Assis no Morro da Providência, militante no campo da educação popular e libertária, é formado em Ciências Sociais pela UFRJ, mestre em educação pela UFRJ, doutorando em história comparada pela UFRJ, editor da Revista Estudos Libertários da UFRJ, é pesquisador do Observatório do Trabalho na América Latina da UFRJ (OTAL-UFRJ) e professor de sociologia da Rede Estadual de Educação do RJ.

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