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A PANDEMIA NA MALOCA*: população de rua, necropolítica e redução de danos

Abril 13, 2020 - 15:36
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“Se considerarmos a política uma forma de guerra, devemos perguntar: que lugar é dado à vida, à morte e ao corpo humano (em especial o corpo ferido ou morto)? Como eles estão inscritos na ordem de poder?” (Achille Mbembe, em "Necropolítica").

A pandemia explicitou ainda mais a enorme discrepância de diferentes realidades sociais que coexistem no Brasil. Infelizmente ainda não estamos, como dizem alguns, “todos no mesmo barco”: alguns estão isolados em coberturas, recebendo delivery de comida pelo elevador e delivery de maconha por drone, outros moram em bairros que estão sem água há semanas, ou passam fome e sede nas ruas, sem saber o porquê delas estarem tão vazias, e com pessoas vestindo máscara.

O coronavírus chegou no Brasil como uma doença de rico, trazida como lembrança de viagens a negócios ou lazer a outros continentes. Uma atualização contemporânea dos efeitos sanitários que as Grandes Navegações tiveram para os povos ameríndios e outros colonizados: milhares de indígenas morreram ao entrar em contato pela primeira vez com doenças européias para as quais não possuíam nenhuma proteção imunológica.

Na atual pandemia, as primeiras afetadas no Brasil foram pessoas que tinham vindo de viagens em outros países (China, Itália, EUA...), mas não demorou também para, uma vez aqui, começar a afetar outras classes sociais, afinal, os privilegiados nunca se isolaram de forma total de outras classes, mas fizeram isso sim seletivamente, escolhendo por conveniência quando mantê-los por perto para serví-los. No dia 17 de março morreu, no Rio de Janeiro, por complicações provocados pelo coronavírus, uma empregada doméstica de 63 anos, que foi exposta ao vírus pela sua empregadora, que havia se contaminado em viagem recente na Itália, e não considerou dispensar sua funcionária, prezando pela sua saúde e sua vida. Ricos imunizados pelos seus privilégios se tornando saudáveis transmissores para populações que não têm o mesmo suporte. O conforto do patrão se torna cada vez mais caro do que a vida do seu empregado, no Brasil da CLT bolsonarista.

Antônio Bispo, o Nêgo Bispo, quilombola, autor e pensador, costuma dizer que a colonização não acabou com a escravidão, ela apenas foi se adaptando às novas realidades sociais, e também moldando a ação da justiça e da lei para garantia dessas dinâmicas opressoras. Acredito que se analisarmos essa pandemia como símbolo, como metáfora, veremos que o seu tema central é o mesmo d’antigamente: bio e necropolítica - a produção da vida como exploração e da morte como controle e solução.

Já sabemos quais eram os corpos mais vulnerados naquele período mercantilista: os negros africanos eram escravizados, torturados, mercantilizados, transportados como mercadoria para outros continentes. Essa lógica se manteve para os períodos capitalista e neoliberais seguinte, atualizando opressões para pobres, negros, mulheres, ALGBTQI+, idosos… Esses são marcadores sociais atravessados por suas especificidades de classe, e pelos diálogos na perspectiva da interseccionalidade, fazendo dessas vulnerabilidades diferentes entre si (e não-hierarquizáveis). Servem quase como autorização para negligência do Estado e violação de direitos, além de por vezes determinarem situações de maior vulnerabilidade.

A extrema vulnerabilidade social, provocada pelo Estado na sua ausência em termos de assistência e na sua presença no controle e punição, leva muitas pessoas à situação de rua, quando dependem dos espaços públicos para viver, sobreviver, dormir, comer, trabalhar, fazer suas necessidades fisiológicas, e também ter lazer - muito antes de uma escolha pessoal, a rua se transforma em destino desenhados por estruturas e políticas. No Brasil, apenas em 2009, no Governo Lula implantou-se uma Política Nacional, pensada para esta população.

Ainda hoje, os números e informações demográficas das pessoas em situação de rua são pouco precisos, o que dificulta a produção de políticas públicas mais eficientes. Em 2017, em Salvador, o Projeto Axé (organização não-governamental que trabalha com população de rua em Salvador desde 1990) divulgou o resultado de sua pesquisa que apresentava uma média de 14 a 17 mil pessoas em situação de rua em Salvador. Em São Paulo, em 2018 o Governo de João Dória extinguiu o Programa De Braços Abertos, que acompanhava mais 800 pessoas no centro do fluxo da Cracolândia, ofertando trabalho e moradia em hotéis da região, com resultados de 88% de redução do consumo de crack pelos beneficiados. Os números dessa população continuam aumentando, e em grandes capitais como Rio de Janeiro e São Paulo, chegam a 25 mil.

Em Salvador, na contramão da movimentação nacional retrógrada de desmonte do SUS e da Reforma Psiquiátrica (que começa na década de 60 e 70 a pensar formas de cuidado que não imponham as lógicas de restrição da liberdade, da autonomia, religiosas e da abstinência), o Projeto Corra Pro Abraço é assumido no Governo de Rui Costa em 2016, permitindo ampliar suas ações de acompanhamento psicossocial e redução de danos para populações em situação de vulnerabilidade social e usuários de substâncias psicoativas - entre esses grupos, a população em situação de rua. Neste Programa sou Supervisor de Equipe, atuando junto a uma equipe multidisciplinar, em campo, no Centro de Salvador, nas ruas e cenas de uso e varejo de substâncias psicoativas, desde 2017.

Com o reconhecimento da rápida expansão da pandemia no mundo e o início de alguns decretos municipais de restrição de circulação, começamos a criar um plano para seguir acompanhando esses sujeitos, que saberíamos que, como em todo episódio crítico no país, acaba sendo ainda mais vitimizada e suas vulnerabilidades aumentadas.

Fortalecemos as parcerias com a Rede de Atenção Psicossocial com quem já atuamos com foco nessa população e construímos capacitações e estratégias de atuação em campo junto com pesquisadores do Instituto de Saúde Coletiva da UFBa, e, a partir do dia 23 de março estávamos indo pra campo em todos os territórios onde atuamos na rua com ações específicas de Redução de Riscos e Danos e orientações de prevenção à pandemia do COVID-19, atendendo uma média de quase 200 pessoas por dia, com oferta de água mineral, lanches e kit higiene (sabonete, shampoo, pasta de dente, escova de dente, papel higiênico, lenço umidecido, papel informativo...).

Nos primeiros dias foi chocante para a equipe perceber a desinformação acerca do vírus e da pandemia: muitas pessoas não entendiam o porquê das ruas vazias e de pessoas usando máscara, outras supunham que a zica estava voltando de forma mais forte (aqui em Salvador temos um epidemia de dengue de números bastante relevantes). Aos poucos fomos observando algumas mudanças: pequenos cuidados passando a ser tomados, uns instruindo aos outros sobre as medidas de prevenção, assistidos nos ajudado a organizar o pessoal para evitar aglomerações - fruto do vínculo de confiança que construímos com essa população, que permite um diálogo que respeita suas realidade e constrói conjuntamente alternativas possíveis.

Ainda assim, vemos presente também um discurso que tem sido muito adotado pela direita brasileira (e mesmo mundial), do negacionismo da pandemia, da relativização e minimização de seus efeitos. Enquanto conservadores de classe média e alta se sustentam na crença do seus “históricos de atleta” e nas falas de um presidente delirante, as classes menos favorecidas parecem viver a negação da pandemia como mais uma banalização das violências que sofrem cotidianamente, das violações de direito, e da própria morte, além de introjeção de idéias estigmatizantes sobre si mesmo. “Quem fuma crack todo dia não vai morrer de uma gripe assim não”, diz um assistido pra nós. De fato, para quem vive em realidades marginalizadas, em corpos deformados e torturados, a pandemia talvez seja um fenômeno ainda não apreendido em sua totalidade. Certamente, a fome é muito mais urgente, e se faz presente a todo tempo, nos seus próprios corpos.

Em equipe, começamos a pensar formas de tornar mais acessível essas informações e orientações, visto que todos os protocolos foram pensados para quem tem casa, pra quem tem água, sabão, e tantas coisas que estão dadas para muita gente. Como sempre o fez a redução de danos, aproveitamos a potência dos próprios usuários na produção de conhecimento e de cuidado, para conseguir construir ações possíveis nessas realidades.

Contar com o apoio de assistidos nossos que passaram pelas 6 turmas do Curso de Formação em Redução de Danos e Referência de Campo (curso de 5 meses com aulas teóricas, visitas institucionais, vivências e estágio em campo) e também de outras pessoas que se configuram como lideranças em seus territórios foi fundamental para facilitar o diálogo, aproveitando o saber da experiência desses “redutores de danos orgânicos” (me apoiando aqui na ideia de Gramsci de “intelectuais orgânicos”), que aqui no caso funcionam como multiplicadores desses conhecimentos e conseguem manejar algumas situações e usar uma linguagem mais próxima do que seria capaz pela equipe. Essa foi uma estratégia usada por muitas famílias para convencer seus parentes idosos a ficarem em casa: ao invés da lei e do controle transgeracional, o exemplo dos pares como forma de mostrar a relevância dessas medidas também para eles.

Se já não bastasse as chances de morte por fome, tuberculose, sífilis, HIV/Aids, violências, agora chega o corona, intensificando todas elas, e ainda trazendo outros efeitos que podemos não antecipar logo de início: o isolamento social das camadas médias e altas, também privou a população de rua das ações solidárias de grupos filantrópicos e religiosos que costumam doar sopa, café, pão e outros alimentos, bem como dificultou muito mais o “mangueio”** em restaurantes e outros estabelecimentos comerciais. Os trabalhos e bicos que a população costuma assumir também ficam reduzidos ou parados nesse momentos de pandemia, o que também restringe suas possibilidades de sobrevivências: menos mercadorias para descarregar, estacionamentos para vigiar, materiais recicláveis para coletar e ferros-velhos para revender...

Além disso, o ficar em casa não é possível para quem não tem uma, e na rua, o isolamento social é um risco, pois significa muitas vezes estar solitário, sem mãos amigas para compartilhar comida, água, cobertor, roupa, e sem outros olhos de cuidado e atenção, que garantem a sobrevivência e evitam violências. Não podemos esquecer que essa é uma população estigmatizada e muitas vezes alvo de ações de violência ideológica e extermínios: o índio Galdino foi morto incendiado em Brasília há mais de 20 anos; na semana passada barracos e pertences de pessoas em situação de rua foram incendiados na região da Sete Portas, em Salvador, por um grupo de homens encapuzados, e as violências contra essas pessoas segue aumentando. Pandemia para alguns; eugenia, necropolítica e democídio para outros.

Se você quer, e pode ajudar essa população, busque entidades e instituições que trabalham com ela, seja no âmbito público ou filantrópico, faça doações de alimentos, dinheiro e materiais de higiene, quando tiver de sair de casa para fazer alguma compra leve alimentos limpos, roupas lavadas e outras coisas que possa dar a quem encontrar; amarre garrafas com água e detergente pelos postes da cidade, para quem precisa se higienizar… Mas antes de tudo, desfaça a linha que te separa dessa população, torne-a visível e relevante. Parece pouco para a dimensão estrutural do problema, mas a Redução de Danos sempre atuou nas linhas de fuga do sistema.

Entendemos que, no Brasil, muitas vezes, trabalhar com redução de danos, e especificamente com população de rua, lidar com suas próprias expectativas e frustrações, é algo cotidiano. Estamos muito longe do que pensaríamos como qualidade de vida ideal e digna para as pessoas em sofrimento mental, em situações de vulnerabilidade social, usuários de substância psicoativa e em situação de rua. Seguiremos na resistência e na batalha, na perspectiva da Redução de Riscos e Danos e do cuidado em liberdade, libertário, e sustentado em evidências científicas, pela garantia dos direitos dessa população até que essas vidas não sejam mais consideradas dispensáveis.

 
Iago Lôbo é psicólogo clínico e social, graduado pela UFBa e pós graduado em Psicologia Analítica pelo Institutos Junguiano da Bahia (IJBA); trabalha no Programa Corra Pro Abraço desde 2016, atualmente como Supervisor de Equipe. ialobosr@gmail.com
*Maloca: ressignificando o tom pejorativo do termo “maloqueiro”, esta é a forma que muitos se autorreferem coletivamente às pessoas em situação de rua aqui em Salvador
**Mangueio: outro termo regional que significa pedir comida, conseguir um lanche ou refeição em estabelecimentos ou com pessoas

Materiais para ampliar o debate:

“População de rua de Salvador em tempos de Covid-19”: http://atarde.uol.com.br/bahia/salvador/noticias/2124828-populacao-de-ru...
“O impacto do coronavírus na periferia de Salvador”: https://www.notticias.org/artigo/o-impacto-do-coronavirus-na-periferia-d...
“As desigualdades sociais que a pandemia da covid-19 nos mostra”: https://www.brasildefato.com.br/2020/04/04/artigo-as-desigualdades-socia...
“Moradores de rua enganam o estômago com água e esperam horas no sol por comida”: https://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/2020/04/moradores-de-rua-enganam...
“Prevenção: Programa arrecada itens de higiene para população em situação de rua”: http://coronavirus.atarde.com.br/programa-corra-pro-abraco-arrecada-e-re...
Campanha de arrecadação do Programa Corra pro Abraço: http://www.estadovoluntario.ba.gov.br/visualizar_doacao.html;jsessionid=...
Cartilha desenvolvida pelo LEPSIS?USP (Laboratório de ensino e pesquisa em psicopatologia, drogas e sociedade) sobre abordagem de cuidado da pessoam em situação de rua para prevenção da disseminação de COVID-19: https://sites.usp.br/lepsis/orientacoes-sobre-a-abordagem-de-cuidado-da-...

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