Tráfico cultural e repatriação em museus
A imagem de teaser desse texto foi tirada no país onde esse altar foi originalmente construído, certo? Errado. Trata-se do Altar de Pérgamon, que, apesar de ter sido construído em Pérgamon, na Turquia, foi expropriado pela Alemanha em 1886 para "evitar degradação"[1] e permanece lá até hoje. Esse é só um dos inúmeros exemplos de artefatos, objetos e obras de arte roubadas ou obtidas de forma duvidosa pela Europa e EUA.
A nova prática do Estado Islâmico de destruir artefatos tem retomado o debate sobre o tráfico cultural, expropriação e repatriação[2]. São recorrentes os pedidos de repatriação -- devolução dos artefatos aos seus países de origem --, sobretudo por parte de países africanos, porém esse debate, que muitos achavam que já havia sido resolvido (em defesa da repatriação) está retomando a partir dessa prática do Estado Islâmico. Na verdade, os argumentos daqueles contrários à devolução dos bens são os mesmos há décadas; agora eles apenas conseguiram um argumento que julgam convincente para permanecerem em posse dos tesouros roubados.
O ex-diretor do Museu Walters de Arte, em Baltimore, Gary Vikan, é um dos que dizem que essa prática "vai pôr fim ao excesso de bom-mocismo em favor da repatriação"[2], como se houvesse qualquer "bom-mocismo" nesse sentido. Segundo ele, os museus deveriam adotar uma postura mais conservadora em relação a essas devoluções, tendo em vista a violência que assola a região em torno do Estado Islâmico. Até o prefeito de Londres, Boris Johnson, afirmou publicamente que esses acontecimentos são "razão suficiente para justificar a retirada dos mármores de Elgin do Partenon, na Grécia, que hoje estão no Museu Britânico"[2]. Essa postura neocolonialista, no entanto, não é nova. O arqueólogo Richardo L. Elia, da Universidade de Boston, avalia que era apenas uma questão de tempo para que "alguns na comunidade de colecionadores de arte tentarem aproveitar esta pesadelo cultural em benefício próprio"[2]. As justificativas para não devolverem as obras são "artimanhas jurídicas necessárias para evitar a devolução", segundo o historiador Pascal Blanchard, especialista na época colonial[3]. Essas artimanhas vão desde questionar se essas obras pertencem de fato aos países de origem, até afirmar que os museus desses países "não têm as condições adequadas de segurança e conservação"[3].
Mas os argumentos para a não repatriação não param aí. O Museu Britânico é um dos que apelam para o discurso de que "certas obras pertencem à humanidade" e que "são parte da herança do mundo e transcendem fronteiras políticas"[1]. É assim que se recusam a devolver à Grécia os mármores do Parthenon (um templo na Acrópole de Atenas), que já estão sendo reclamados por seu país de origem há 30 anos. Mas para os ingleses, as obras "pertencem à humanidade" desde que fiquem em suas galerias, gerando lucro aos cofres britânicos. Eles afirmam que se não fossem por eles, boa parte dos acervos reclamados por outros países já teriam sido destruídos, como é o caso do próprio Parthenon, que era usado como armazém de pólvora antes de ser tomado pelos ingleses; ou da Pedra de Roseta, um bloco de granito do século II a.C., que foi fundamental para a tradução dos hieroglifos egípcios, mas que era usada como material de construção na cidade de Roseta, no delta do Nilo. Com esse discurso paternalista, o Museu Britânico, assim como outros, se apresentam como representantes de sociedades "salvadoras" da cultura e da história dos povos da antiguidade. Os ingleses ainda afirmam que "obras de diferentes culturas devem estar lado a lado, para comparação do público"[1], pois, claro, estão sempre pensando no bem do público, não em seu próprio prestígio. Tão benevolentes são, que o British Museum propôs empréstimos à Nigéria e à Etiópia, que foram saqueadas durante uma expedição britânica em 1868, mas se recusam a devolver o que roubaram. Do outro lado da moeda, a Grécia já gastou 130 milhões no Museu da Acrópole, com intuito de reaver os mármores do Parthenon, pois os "britânicos diziam que, se devolvessem as peças, não teríamos lugar apropriado"[1], disse o presidente do museu, Dimitrius Pandermalis. Qual a desculpa agora para a não devolução das peças? Enquanto isso, o diretor do British Museum, Hartwig Fischer, afirma que a instituição está "absolutamente comprometida com a luta contra o comércio ilícito e os danos ao patrimônio cultural"[4]. Resta compreendermos o que eles entendem por lícito e ilícito, nesse contexto.
Boa parte das obras do British Museum vieram de outras saques: aqueles perpetuados por Napoleão Bonaparte e sua equipe de eruditos que viajavam com ele para "estudar os tesouros escondidos no deserto"[5]. Essa equipe constava de mais de "150 astrônomos, botânicos, engenheiros e artistas acompanharam as tropas", segundo a americana Nina Burleigh no livro Mirage: Napoleon’s Scientists and the Unveiling of Egypt (“Miragem: Cientistas de Napoleão e a Revelação do Egito”, sem tradução para o português)[5]. Não por acaso, um desses cientistas, Dominique Vivant, se tornou diretor do famoso museu do Louvre. Mas, claro, em seu site, o Louvre afirma que a criação de sua coleção não foi diretamente devido às expedições napoleônicas)[5]. Não à toa, segundo as palavras do egiptólogo francês Claude Rilly, "se o visitante gastar apenas um minuto em cada peça da seção de arte egípcia do Louvre, vai precisar de 10 dias para ver tudo"[5], ainda que não seja tudo fruto de roubos.
A trajetória britânica de apropriação de artefatos vem de longa data. Para citar algumas dessas práticas[5], temos o caso do embaixador britânico em Constantinopla, lorde Elgin, que mandou remover centenas de relíquias de Atenas e enviou para Londres[6]. Outro exemplo são as apropriações do italiano Giovanni Belzoni, que, a mando do Reino Unido, no início do século XIX removeu o busto do faraó Ramsés II e encontrou o Templo de Abu Simbel e a tumba de Seti I, cujos tesouros dessas e de outras 7 tumbas foram também para Londres.
Para além do British Museum, o museu Pitt Rivers, da Universidade de Oxford, também está sendo acusado por ativista ungandenses, de possuir 330 artefatos roubados do reino de Bunyoro-Kitara, os quais o museu se recusou a devolver. Bunyoro afirma que se trata do resultado de uma pilhagem sistemática feita na região na década de 1890. Segundo Ladislaus Rwakafuzi, o assessor jurídico do reino em Uganda,essa "devolução dos artigos traria uma solução para os africanos que continuam sofrendo os efeitos secundários do colonialismo"[8].
Não é só a Inglaterra que mantém essa postura de não repatriação de obras roubadas. Embora alguns acreditem que o debate está mais avançado na Alemanha, devido aos roubos do exército Vermelho na época da Alemanha Nazista[3], são os alemães também que se recusam a devolver o busto de Nefertiti ao Egito[7]. A justificativa é que o busto foi obtido legalmente e que "Nefertiti é e continuará sendo a embaixadora do Egito em Berlim", segundo o presidente da Fundação do Patrimônio Histórico Prussiano, Hermann Parzinger. A história contradiz essas afirmações, pois o busto foi encontrado por um arqueólogo alemão, Ludwig Borchardt, em 1912, a 275 quilômetros ao sul do Cairo. No ano seguinte, a relíquia foi levada para a Alemanha. Ainda assim, os representantes da Fundação não consideram o pedido de repatriação oficial, porque não teria sido assinado pelo primeiro-ministro egípcio, Ahmed Nazif, embora Zahi Hawass, chefe do Conselho Supremo de Antiguidades Egípcias, afirme que o pedido foi feito pelo órgão e aprovado pelo primeiro-ministro e pelo ministro da cultura. Esse pedido de repatriação é fruto de uma política egípcia de tentar recuperar os objetos que foram levados para fora do país no início do século XX. Mais desses roubos arqueológicos em prol da Alemanha foram feitos pelos arqueólogos Richard Lepsius, que descobriu mais de 60 pirâmides e 130 tumbas no Egito, e Robert Koldewey, que passou 18 ano escavando no Iraque. Ambos enlargueceram o acervo do museu alemão Pergamon[5].
Infelizmente o pensamento de não devolução não aparece somente nas potências colonialistas. Esse tipo de fala também pode se encontrado em outros lugares, como é o caso de Abdulrahman al-Rashed, comentarista sobre o Oriente Médio da rede de TV MBC Group, em Dubai, que se mostrou contrário às repatriações, afirmando que essas depredações do Estado Islâmico "provam que não merecemos esses tesouros que enchem nossos museus e estão enterrados sob nossas areias"[2]. Nesse sentido também é a defesa de James Cuno, presidente da Fundação J. Paul Getty, que administra o Museu Getty, da Califórnia, que vê essa luta pela repatriação como "pedidos de restituição frívolos". Para ele, essas repatriações ameaçam o legado cultural dos próprios países que as reivindicam. Em suas palavras, "calamidades podem acontecer em qualquer lugar do mundo,mas é pouco provável que ocorram ao mesmo tempo (...). Sou a favor de 'distribuir o risco'"[2] -- desde que essa "distribuição" fique restrita à Europa e Estados Unidos, é claro --, afinal, para ele, a cultura antiga é universal[5].
Porém nem tudo está perdido. Do lado dos defensores da repatriação, diversos arqueólogos se mostram contrários a esse discurso paternalista e neocolonialista, dizendo que esse tipo de política é partidária do tráfico cultural e do colonialismo[2]. A Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco) também afirma que o direito de repatriamento é uma forma de preservar a identidade cultural dos países onde os objetos se encontravam originalmente[5]. Os gregos também argumentam que, apesar do discurso de que as relíquias pertencem à humanidade fazer sentido, nada justifica que essas peças fiquem apenas na França e Reino Unido. Se comparados com a Grécia, Turquia e Egito, aqueles países produziram uma parte ínfima de seu acervo mais valioso[1]. Outra defensora da repatriação é a advogada Tess Davis, especialista em artefatos roubados junto à Coalizão de Antiguidades, que afirma que questiona o fato de que "ninguém argumentou, por exemplo, que os chamados 'Monuments Men' (Programa de Monumentos, Belas-Artes e Arquivos das forças aliadas) deveriam ter guardado as obras que resgataram durante a Segunda Guerra Mundial porque sua segurança na França ou Itália, por exemplo, não podia ser garantida"[2]. Em suas palavras, "O Iraque pode estar passando por uma fase difícil agora, mas nada impede que Nova York passe por uma amanhã (...). As estátuas de 3.000 anos hoje ameaçadas no Iraque já assistiram à passagem de muitos impérios".
O debate sobre a repatriação de artefatos roubados é fruto do ainda presente colonialismo europeu e ainda está em discussão. Resta àquelas e àqueles favoráveis à repatriação se manterem firmes na luta.
↑[2] https://www1.folha.uol.com.br/ilustrada/2015/04/1622618-destruicao-de-ar...
↑[3] https://g1.globo.com/mundo/noticia/africa-exige-da-europa-restituicao-de...
↑[4] https://www.bbc.com/portuguese/geral-45148541?ocid=wsportuguese.chat-app...
↑[5] https://super.abril.com.br/historia/na-mao-leve-roubos-historicos/
↑[6] Nessa época a Grécia estava sob o domínio turco-otomano e o sultão teria autorizado Elgin a remover essas peças, porém essa prática não deixa de ser condenável, sobretudo quando pensada nos dias de hoje, uma vez que não foi feita a repatriação.
↑[7] https://veja.abril.com.br/ciencia/museu-alemao-descarta-devolver-busto-d...
↑[8] https://www.cartacapital.com.br/internacional/rei-de-uganda-luta-com-mus...
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Repatriação, já!
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Já!!
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